Sexta-feira (11/04) Denilson Werle (UFSC) apresentará seu trabalho "A estrutura básica como objeto da justiça" na Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP. O evento ocorrerá as 10h na sala 115 do prédio de Filosofia e Ciências Sociais.
Veja abaixo uma entrevista de Werle para o Instituto Humanitas da Unisinos na qual o filósofo discute o papel das teorias contratualistas na filosofia política contemporânea:
Os méritos do neocontratualismo nas sociedades democráticas
Por: Márcia Junges e Luciano Gallas
IHU On-Line - A partir do horizonte filosófico do neocontratualismo, quais são as questões centrais na teoria política contemporânea?
Denilson Luis Werle - Essa é uma pergunta difícil de ser respondida em poucas palavras, não só porque o horizonte filosófico do neocontratualismo é muito diversificado, com diferentes interpretações da tradição do contrato social, mas também porque envolve as obsessões pessoais daquele que observa as discussões contemporâneas.
De um ponto de vista mais geral, acho que o grande mérito do neocontratualismo está em ter procurado dar um novo impulso crítico-reflexivo às democracias constitucionais, já mais ou menos consolidadas, reformulando certas questões clássicas da filosofia política moderna — por exemplo, como fundamentar objetivamente nossos juízos morais e políticos; como saber se uma norma é correta ou errada; como justificar princípios para uma sociedade justa; como entender os ideais de liberdade e igualdade e o ethos da democracia; o que torna legítimo o exercício do poder político — só que agora pensadas no contexto de conflitos sociais e políticos de sociedades democráticas. Não se trata mais de pensar sobre a origem do Estado, a natureza da soberania e do poder político, mas em encontrar formas de realizar os ideais de igualdade e liberdade e de inclusão do outro nas sociedades democráticas. Claro, não deixam de ser problemas filosóficos renitentes, mas que são também pensados e reformulados em um contexto de novas lutas sociais, que em grande medida se valem da linguagem dos direitos fundamentais para alcançarem seus objetivos. E a questão central, para a filosofia política em geral e para o neocontratualismo em particular, é encontrar critérios normativos ou um ponto de vista moral imparcial que permita aos próprios cidadãos deliberarem e julgarem a legitimidade das diferentes reivindicações que dirigem uns aos outros.
De uma forma um pouco esquemática, pode-se dizer que as reflexões se concentram em dois domínios temáticos distintos, mas que interligam economia e cultura: por um lado, os conflitos distributivos em torno dos benefícios e encargos da cooperação social, que se acirram cada vez mais com as sucessivas crises da economia de mercado globalizada; por outro, problemas de tolerância e de reconhecimento em sociedades marcadas pelo pluralismo dos planos de vida individuais e das formas de vida culturais. Vale a pena mencionar aqui que, embora o neocontratualismo seja considerado uma filosofia política de teor mais normativo, acho que não é muito frutífero simplesmente reduzi-lo a algum tipo de normativismo abstrato (ou que teria uma antropologia individualista) que procura pensar questões apenas de forma analítica e derivar sociedades ideais fictícias a partir da prancheta ou da mesa do filósofo. É justamente o contrário: as questões mencionadas são pensadas como problemas reais de nossa sociedade e na forma de uma crítica imanente, por assim dizer, recorrendo àqueles ideais normativos que, no decorrer de lutas e conflitos sociais, foram se enraizando na própria autocompreensão cultural, nas práticas e instituições do constitucionalismo democrático moderno. A ideia básica que dá sentido ao projeto neocontratualista é o conteúdo da normatividade (moral, política e jurídica) poder ser considerado legítimo ou justificado, se puder ser objeto de um acordo público e racional entre cidadãos ou pessoas autônomas, livres e iguais. Claro, isso ainda deixa uma boa margem para controvérsias, na própria tradição do contrato social, sobre o que significa cada termo dessa ideia.
IHU On-Line - Em uma sociedade justa, como é possível conciliar a questão da justiça distributiva com a temática da tolerância?
Denilson Luis Werle - Essa conciliação é possível quando a “estrutura básica de uma sociedade” estiver orientada por princípios de justiça que sirvam como uma base pública de justificação para que os próprios cidadãos e cidadãs possam articular e fundamentar suas diferentes reivindicações, seja por distribuição de renda e riqueza, seja pelo respeito e reconhecimento de suas concepções de vida boa, e isso a partir de um amplo leque de razões (éticas, morais, políticas, religiosas, jurídicas). Acho que nisso reside o papel dos princípios de justiça: eles não fornecem uma solução determinada, mas permitem que os cidadãos e cidadãs tenham uma linguagem geral de justificação pela qual podem dar sentido às suas experiências de injustiça. Mas, claro, isso não é tão simples.
O longo debate entre Nancy Fraser e Axel Honneth sobre “redistribuição” e “reconhecimento”, com todas as réplicas e tréplicas, mostrou justamente o quanto é difícil pensar a articulação entre estes dois âmbitos. Mas o resultado final desse debate não me parece muito frutífero. Acho que, afinal, não cabe elaborar uma teoria sobre o que está em jogo nessas reivindicações concretas — se são expressão da luta por paridade de participação ou são diferentes formas de luta por reconhecimento. O que me parece prioritário em uma sociedade justa é que todos tenham um direito básico à justificação e que a esfera pública da sociedade democrática se constitua em um processo de aprendizagem que permita aos cidadãos e cidadãs manifestarem suas diferentes vozes e articularem suas reivindicações por justiça, seja da ordem da distribuição ou da tolerância. Ambas são reivindicações que têm uma origem comum em experiências de injustiça, de exploração e de humilhação, que, na prática e nas narrativas de justificação, estão geralmente interligadas umas com as outras.
IHU On-Line - Qual é a origem da ideia de tolerância?
Denilson Luis Werle - Essa ideia tem uma história bem antiga e rica, que demandaria muito espaço e tempo para ser contada, da antiguidade até a modernidade — e não é à toa que o livro de Rainer Forst , Toleranz im Konflikt (talvez, até o momento, o livro que fez a análise mais exaustiva sobre a ideia e história da tolerância, infelizmente sem tradução para o português e com uma tradução reduzida para o Inglês, autorizada pelo próprio autor), tenha singelas 800 páginas, nas letrinhas da Suhrkamp. A concepção moderna de tolerância teve sua origem nas sangrentas e devastadoras guerras religiosas no início da modernidade, que colocaram em xeque os padrões tradicionais de legitimação do poder político, forçaram a separação entre Estado e religião e assinalaram a necessidade de pensar formas de convivência social entre pessoas que não apenas tinham interesses diversos, mas também valores éticos e culturais distintos e muitas vezes profundamente divergentes e irreconciliáveis.
Em seu primeiro momento, a tolerância assumiu uma forma pejorativa (muito criticada por Goethe, por exemplo) como política de poder para manter a segurança e a ordem social, em que uma maioria tolera a convivência com minorias. Era uma tolerância como condescendência, permissão, em que minorias, como cidadãos de segunda classe, eram “toleradas” de modo indulgente, contanto que não perturbassem a ordem pública e a cultura dominante. No decorrer de processos complexos de racionalização do poder e de racionalização da própria moral e autocompreensão cultural, que não tenho como explicar aqui, foi se enraizando em práticas sociais e instituições políticas e jurídicas uma concepção mais igualitária e universalista de tolerância: a tolerância baseada no respeito moral do outro enquanto pessoa, independentemente de sua filiação comunitária, religiosa, de sua identidade, sexo, gênero, raça. E é essa ideia de tolerância, baseada no respeito moral e na dignidade humana, que se coloca como um dos fundamentos normativos do constitucionalismo democrático moderno. Claro, isso não nos livra das muitas ambiguidades e mal-entendidos que acompanham a trajetória da ideia de tolerância.
IHU On-Line - E qual é o sentido dessa ideia? Quais são as maiores dificuldades em se estabelecer seus limites legítimos?
Denilson Luis Werle - Há de fato muita discussão sobre o sentido da tolerância, tanto na esfera pública mais ampla quanto em fóruns mais especializados (comissões, assembleias e universidades). O que é muito comum é confundir fórmulas simples do tipo “viva e deixe viver”, “a liberdade de um acaba onde começa a liberdade do outro”, ou atitudes de laissez-faire ou de ataraxia, como se fossem expressões de mentalidades abertas e tolerantes, quando, na verdade, em um exame mais preciso, além de serem insuficientes para caracterizar uma atitude tolerante, são inclusive indesejáveis e ofensivas, pois expressam muito mais indiferença moral e ceticismo do que propriamente de tolerância. A tolerância é uma virtude que surge sempre em situações de conflito e que envolve a formação de um juízo sobre uma prática, instituição ou constelação de valores, em que se misturam dois tipos de razões: por um lado, as pessoas têm razões suficientes para discordar de certa prática ou de certos valores, e, ao mesmo tempo, se veem diante de razões que justificam o respeito ao outro. Estamos em uma situação de tolerância, portanto, quando nossas razões de objeção não são suficientes o bastante para superar as razões de aceitação. E a situação de intolerância surge precisamente quando as razões de objeção são tão intensas que se transformam em razões para rejeitar certa ação ou comportamento como intolerável.
Embora no contexto das democracias constitucionais certas ações são claramente intoleráveis, como a discriminação racial, a escravidão, acho que seria muito infrutífero querer estabelecer abstrata e teoricamente os limites do tolerável e do intolerável. Esses limites dependem sempre de um contexto concreto de justificação, de um diagnóstico do que está em disputa nos conflitos políticos. E o que a filosofia política e moral pode fazer, o que não é pouca coisa, é construir princípios de justiça, como os de Rawls, por exemplo, ou reconstruir os procedimentos da soberania popular, como faz Habermas, que já estão mais ou menos enraizados nas práticas e instituições das democracias constitucionais, e que possibilitem aos próprios cidadãos e cidadãs levarem adiante essa tarefa prática, transformando as situações de conflito em processos de aprendizagem nos quais eles próprios digam quais os limites do tolerável e do intolerável.
A tolerância, nesse sentido, é um conceito que depende de outros para ganhar um sentido e conteúdo moral mais preciso. Sobretudo depende de uma prática de justificação pública. E, claro, sempre devemos considerar a possibilidade de alguns indivíduos, baseados em suas próprias convicções ou em seus impulsos animalescos mais profundos e secretos, serem intolerantes e recusarem as liberdades da igualdade democrática. Eles insistirão que a verdade de suas crenças justifica o uso coercitivo do poder estatal para excluir os dissidentes. Que atitude uma sociedade justa deveria assumir diante daqueles que, valendo-se das liberdades básicas, como a liberdade de expressão, por exemplo, são radicalmente intolerantes? Dizer simplesmente que aqueles que rejeitam o princípio da liberdade igual são não democráticos ou não razoáveis não resolve muito. O que se pode dizer, e aqui cito o que Rawls escreveu em Uma teoria da justiça, é que só podemos restringir a liberdade daqueles que são intolerantes quando os tolerantes, com sinceridade e razão, acreditarem que sua própria segurança, e a segurança das instituições da liberdade, estão em perigo. Só nesses casos devem os tolerantes coibir os intolerantes.
O princípio básico é estabelecer uma constituição justa que garanta as liberdades de cidadania igual. Porém, como disse antes, é muito mais fácil afirmar isso como um princípio teórico do que definir na prática quando essa linha foi ultrapassada. Mas a questão importante é que podemos tolerar algumas doutrinas que são intolerantes e rejeitam o esquema igual de liberdades básicas porque ainda não constituem uma ameaça à liberdade dos outros, um argumento muito parecido ao princípio do dano de Stuart Mill . Para saber quando a linha do tolerável é ultrapassada, é necessário pensar a tolerância em seu vínculo com a legitimação política por meio do uso público da razão.
IHU On-Line - Que nexos específicos podem ser apontados entre tolerância, justiça e democracia? Em que medida podemos falar na necessidade de uma razão pública?
Denilson Luis Werle - Tolerância, justiça, democracia e razão pública me parecem conceitos ou ideais indissociáveis. É muito difícil pensá-los isoladamente se considerarmos a questão dos limites da tolerância. Por um lado, a definição dos limites do tolerável e do intolerável depende de princípios de justiça que possam fornecer uma base pública de justificação para os acordos políticos acerca dos direitos e deveres fundamentais. Penso, por exemplo, nos dois princípios da justiça de Rawls, principalmente (mas não exclusivamente) o primeiro princípio do sistema de liberdades iguais. Porém, estes princípios ainda são bastante gerais e indeterminados (e não poderia ser de outra forma): eles precisam ser interpretados em situações concretas. O que nos leva, por outro lado, à necessidade de pensar a questão da tolerância em seu vínculo com a democracia e a razão pública. Mas aqui se trata também de uma via de mão dupla: as razões para a tolerância devem ser apresentadas nas deliberações políticas, no espaço público, e passar pelo crivo de uma prática de justificação recíproca e universal. Porém, a virtude da tolerância, como expressão da ideia da razoabilidade, do dever moral de civilidade e tudo o que a acompanha — principalmente o conjunto do que Rawls chamou de burdens of judgment —, é ela própria uma condição de possibilidade para a prática da justificação pública. Em uma democracia, as pessoas têm de estar dispostas a aceitar o jogo de dar e receber razões, o que já implica ultrapassar a lógica “amigo e inimigo” e adotar uma atitude de respeito ao outro.
IHU On-Line - Quais são as diferenças e semelhanças fundamentais na forma como Rawls e Habermas concebem a razão prática?
Denilson Luis Werle - São realmente muitas as semelhanças e diferenças. Para mencionar a semelhança que me parece mais significativa, ambos se filiam a uma tradição kantiana e procuram levar adiante uma interpretação intersubjetiva e política do conceito kantiano de liberdade como autonomia. Ambos compartilham o princípio básico de justificação pública segundo o qual os cidadãos atuam de modo autônomo quando se submetem àquelas normas que poderiam ser aceitas, com boas razões, por todos os atingidos, com base no uso público de sua razão. A diferença está em como interpretar a razão prática. Rawls adota o que se poderia chamar de um “construtivismo não metafísico”, que não é propriamente uma “teoria da razão” e procura se esquivar (ou seja, não afirma nem nega a verdade de outras teorias da razão) das questões metafísicas controversas: o exercício da razão humana em instituições livres consiste em articular de forma coerente diferentes tipos de juízos práticos em um “equilíbrio reflexivo”, de modo que estejam justificados em razões que ninguém poderia razoavelmente rejeitar. São aqueles que poderiam ser o conteúdo de uma “razão pública”. Enquanto Habermas, que segue a ideia da filosofia como teoria crítica da sociedade, que opera de modo imanente, fundamenta uma teoria da razão comunicativa através da reconstrução racional (“pós-metafísica”) dos pressupostos normativos já implícitos na ação comunicativa cotidiana, no mundo da vida e nos discursos racionais na esfera pública política, e que já são imanentes (embora sejam “fagulhas de uma razão existente”) nas práticas e instituições do moderno Estado democrático de direito. É a partir da ideia de crítica como reconstrução que podemos pensar os procedimentos do “uso público da razão” na multiplicidade de suas vozes.
IHU On-Line - Nesse sentido, como aparecem no debate entre liberais e comunitaristas os fundamentos de uma concepção liberal igualitária de cidadania?
Denilson Luis Werle - Atualmente, é difícil sistematizar as posições nesse debate. No início, ele foi interpretado como se houvesse duas posições bem distintas sobre diferentes questões: qual o conceito de pessoa e de liberdade que uma concepção de cidadania deveria privilegiar, se a noção normativa e abstrata de pessoa moral livre e igual ou o conceito de pessoa eticamente situada em contextos comunitários; se deveria haver uma neutralidade das instituições do Estado democrático de direito frente às diferentes concepções de vida boa ou seria inevitável o Estado expressar alguma ideia do bem comum; se o “ethos” da democracia deveria estar baseado em um “modus vivendi” ou “consenso sobreposto” em torno de certas liberdades fundamentais iguais ou deveria ser a expressão de uma eticidade substantiva, nas virtudes e na participação política ativa; e sobre qual a melhor maneira de pensar a própria razão prática, se a partir de princípios universalistas, procedimentais, cognitivos e formais, ou a partir das “avaliações fortes” que articulam o sentido do horizonte de valores de uma vida boa. Porém, esse esquema geral parece não funcionar muito bem quando olhamos com mais cuidado as obras de cada autor. Autores denominados comunitaristas, como Michael Walzer e Charles Taylor , e autores chamados “liberais”, como Rawls e Kymlicka , não podem simplesmente ser encaixotados nesse esquema. A discussão tomou um rumo autocrítico e reflexivo, em que ambas as posições buscam incorporar, em seus próprios termos, os motivos, temas e preocupações do outro lado, o que acaba por enriquecer, assim acredito, nossa compreensão sobre os fundamentos normativos da concepção liberal e igualitária de cidadania democrática.