domingo, 15 de fevereiro de 2015

A contrarreforma política

Após a derrota na eleição para a presidência da Câmara dos Deputados, o governo Dilma corre o risco de ter desastradamente pavimentado o caminho para a mais sinistra das reforma políticas em circulação no país: o "distritão". A regra levaria em conta apenas o número de votos individuais de cada deputado na distribuição de cadeiras no parlamento. A favor da proposta, o vice-presidente Michel Temer (PMDB) procura demonstrar em seu artigo O 'distritão' de que modo o modelo do voto proporcional "prestigia o partido político em detrimento da vontade da maioria popular" e que, portanto, deveria ser reformulado já nas próximas eleições.

Na edição de hoje do caderno AliásWagner Iglecias (USP) alerta para uma potencial "contrarreforma eleitoral" em curso no congresso capitaneada por uma inusitada coalização PMDB-DEM. Outro pesquisador a alertar para os perigos da contrarreforma é o cientista político Jairo Nicolau (UFRJ). Segundo Nicolau, a proposta do distritão defendida por Temer seria "a pior de todas as existentes" (vale notar que o próprio relator da reforma e apoiador do distritão, Marcelo Castro [PMDB-PI], enfrenta hoje processo por compra de voto e irregularidade na prestação de conta de campanha, dois dos problemas da "hiperindividualização" apontados por Nicolau).

Outras vozes serão bem-vindas nesse debate...

Contrarreforma Política 

Wagner Iglecias

A Câmara dos Deputados instalou, nessa semana, a Comissão da Reforma Política. O DEM, que vinha desidratando nos últimos tempos por conta da perda de parlamentares para outras legendas e a eleição de bancadas cada vez menores, ficou com a presidência. A relatoria coube ao PMDB. A dobradinha DEM/PMDB só foi possível porque os dois partidos estiveram juntos no bloco que garantiu a vitória de Eduardo Cunha para a presidência da Casa, há duas semanas. Derrotado, o PT ficou de fora e terá dificuldades de influenciar as novas regras eleitorais, que, segundo Cunha, deverão valer já para as eleições municipais do ano que vem.

Entre os principais pontos a serem discutidos estão a reeleição para cargos no Executivo, a duração dos mandatos, a obrigatoriedade do voto, a mudança no cálculo para a eleição de deputados e o financiamento das campanhas eleitorais. Trata-se de um conjunto de alterações que, se vierem a ocorrer, mudarão não apenas as regras das próximas eleições como nosso sistema político, com consequências sobre nosso modelo de democracia.

Das propostas que poderão ser aprovadas, talvez a mais inócua seja o fim da reeleição e a alteração dos mandatos executivos para cinco anos. Quem a defende argumenta que se trata de uma forma de evitar que o governante de turno use a máquina pública em seu favor. No entanto, já assistimos diversas vezes a governantes que, na impossibilidade de serem novamente candidatos, buscaram de uma forma ou de outra favorecer os pupilos que indicaram para suceder-lhes. Democracias bem mais antigas que a nossa, como a dos EUA, praticam a reeleição há muito tempo. A chave para o problema está muito mais na fiscalização e na punição do que na extinção pura e simples da regra.

Outra proposta que será discutida pela comissão é relativa à mudança do cálculo para a eleição de parlamentares. Hoje levam-se em conta não apenas os votos obtidos pelos candidatos, mas também o sufrágio nas legendas e o montante de votos obtidos pela coligação de partidos da qual o candidato faz parte. É um modelo controverso, pelo qual eleitos com centenas de milhares de votos carregam consigo para o Parlamento colegas com desempenho bem menos expressivo. Pela proposta que deverá prevalecer na comissão, a do “distritão”, serão eleitos os mais votados, e ponto. Independentemente de partido ou coligação.

Conjugada ao distritão está a manutenção das contribuições de empresas privadas às campanhas políticas. Sua eventual aprovação tornará constitucional o mecanismo que introduz uma competição desigual entre quem tem e quem não tem condições de financiar a candidatura. O STF vinha votando a proibição das contribuições privadas. A votação já estava praticamente decidida, com 6 dos 11 ministros tendo se posicionado pelo fim do financiamento privado. Mas há quase um ano o ministro Gilmar Mendes pediu vistas da ação da OAB que pede o fim das doações. A votação parou e agora a eventual aprovação das contribuições privadas no Legislativo vai embolar o que o Supremo já estava na iminência de decidir.

Na prática, grandes corporações terão, ainda mais que hoje, mais influência sobre os processos eleitorais do que os cidadãos, cada vez mais restritos a essa quase formalidade que é o voto. Deputados eleitos por distritos deverão comportar-se como vereadores federais, sempre em busca de nacos do orçamento federal com vistas a manter a sobrevivência política em seus respectivos currais eleitorais. O Congresso deverá ficar ainda mais pobre como arena de discussão dos principais temas da vida nacional, dado que deputados “de opinião”, com votos espalhados por várias faixas do eleitorado, ou representantes de segmentos específicos da sociedade terão pouca chance de ser os campeões de voto na maioria dos distritos, ficando, portanto, de fora da composição do Legislativo. 

Para completar, deverá ser aprovado também o fim do voto obrigatório. Num país de cultura democrática ainda tão frágil, dezenas de milhões de pessoas poderão se auto-excluir dos processos eleitorais, delegando a uns poucos a definição de seu destino.


A correlação de forças no Parlamento mudou bastante nos últimos meses e a derrota fragorosa do governo na eleição para a presidência da Câmara deu gás para que essa “contrarreforma” venha à tona e seja aprovada rapidamente. Propostas elaboradas por entidades da sociedade civil, como os movimentos sociais, a própria OAB ou mesmo pelo PT, como a desfulanização do voto via voto em lista partidária e o financiamento público exclusivo das campanhas eleitorais, deverão ser derrotadas. Os partidos deverão tornar-se ainda mais fracos e o peso do poder econômico nas eleições deverá ser ainda mais decisivo do que já é. Mecanismos de democracia direta e participativa também deverão ficar de fora da reforma. No frigir dos ovos, estamos diante de mais uma pesada derrota. Desta vez não somente do governo de turno, mas principalmente dos setores da sociedade civil que almejam uma democracia mais ampla, profunda e transparente. O divórcio que o País vem observando há algum tempo entre as ruas, de um lado, e os gabinetes e Parlamentos, de outro, deverá se aprofundar.

WAGNER IGLECIAS É DOUTOR EM SOCIOLOGIA E PROFESSOR DA ESCOLA DE ARTES, CIÊNCIAS E HUMANIDADES DA USP 



O 'distritão'

MICHEL TEMER 


Um dos primeiros temas da reforma política é o da forma de eleição dos deputados federais, estaduais e vereadores, escolhidos hoje por voto proporcional. Dele deriva o chamado quociente eleitoral. Se o quociente é de 300 mil votos, o partido que obtém 900 mil votos elege três deputados federais. Não importa a votação de cada candidato, mas o total obtido pela legenda partidária. Em exemplo mais expressivo: se um candidato da legenda faz 1,5 milhão de votos e os demais correligionários 4, 10 ou 20 votos, o partido leva para a Câmara cinco deputados.

É contra essa fórmula que a nossa pregação pelo "distritão" ou voto majoritário se insurge. Esse sistema significa que os mais votados serão eleitos. São Paulo tem 70 deputados que seriam eleitos segundo a ordem de votos obtida. As razões que fundamentam essa forma são de natureza jurídica e política.

Primeiro, a fundamentação jurídica. A Constituição de 1988 adota retumbantemente a democracia como regime de governo. Significa: a maioria pratica os atos de governo, respeitando a minoria.

Nessa concepção o primeiro registro que se deve fazer é que o titular do poder é o povo. Essa é a regra fundante do nosso sistema democrático. Presidentes, governadores, prefeitos, tribunais governam pelo critério da maioria. Os três primeiros se elegem por essa forma, exigindo-se às vezes maioria absoluta. Nos tribunais as decisões judiciárias (que são atos de governo) se dão por maioria de votos. Nas casas legislativas a regra constitucional para eleição das mesas diretoras e das comissões deve obedecer ao princípio da proporcionalidade do maior para o menor. A única exceção à determinação de que a maioria é que fala em nome do povo se dá no caso do sistema eleitoral ora vigente, que é o critério da proporcionalidade obtido no quociente de votos. Já houve caso concreto de um deputado federal eleito com cerca de 1,5 milhão de votos que conduziu pela legenda mais quatro deputados - um deles com 382 votos (e que residia de fato em outro Estado). Enquanto um candidato de outra legenda com 128 mil votos não foi eleito, em face do chamado quociente eleitoral.

Aqui se impõe a pergunta: quem representava mais corretamente a regra segundo a qual o poder emana do povo, o de 382 ou o de 128 mil votos? Faço esse registro porque o parlamentar que vota a favor ou contra um projeto de lei está praticando ato de governo e agindo em nome do povo. Portanto, a manutenção da proporcionalidade eleitoral partidária para eleição dos deputados viola aquela regra definidora do titular do poder, permitindo que um representante da maioria (128 mil) seja alijado por um representante de inexpressiva minoria (382). Se pudesse haver inconstitucionalidade de norma constitucional, diríamos que esta fere o princípio basilar do nosso sistema. Mas não há. Daí por que precisamos modificar a regra constitucional para obedecer ao princípio da maioria.

Hoje o sistema proporcional prestigia o partido político em detrimento da vontade da maioria popular. Entre dois valores constitucionais, vontade majoritária e partido político, deve prevalecer o primeiro. A contradita a essa tese é a de que a nossa fórmula desvaloriza os partidos políticos. Digo que não. Primeiro, o Supremo Tribunal Federal já decidiu pela fidelidade partidária daqueles que são eleitos pela legenda e na emenda constitucional que vier a estabelecer o voto majoritário artigo seguinte estabeleceria a fidelidade como critério. Ou seja, o mandato continuaria a ser do partido. Outro fundamento jurídico para esta tese é a do artigo 14 da Constituição, que define o voto como direto e secreto e com valor igual para todos. Ora, a proporcionalidade desiguala o voto do eleitor. Não é igual o voto dado para quem teve 128 mil e para aquele que teve 382.

Além da razão jurídica, há razões políticas que amparam o "distritão". Fala-se muito na eliminação das coligações partidárias. Qual o objetivo delas no sistema proporcional? É aumentar os votos das legendas para efeito de ocupação de cadeiras na casa legislativa.

Adotado o voto majoritário, os partidos não terão interesse nas coligações. Outro dado: quando o partido organiza a sua chapa de deputados federais, que pode ser uma vez e meia o número de cadeiras que cabem ao Estado, vai procurar candidatos que às vezes não têm mais que 500 votos apenas para engordar o quociente partidário. Ou, então, busca uma figura muito popular e fora dos quadros partidários que possa trazer 1,5 milhão ou 2 milhões de votos.

A proposta não impede tais cidadãos de concorrer. Poderão fazê-lo e eleger-se, mas não levarão consigo deputados que não tiveram votos ensejadores da maioria. Outra vantagem é que se hoje o partido (tomo o exemplo de São Paulo) pode apresentar 105 candidatos, e o faz, com vista ao quociente eleitoral, deixará de fazê-lo. Será certo que os partidos meditarão sobre quantas vagas poderão obter. Se forem cinco ou seis, o partido não lançará mais que 12 ou 15 candidatos, tornando mais programáticas suas falas, no rádio e na televisão e no material de propaganda, e menos caras as campanhas eleitorais.

Outras soluções podem ser debatidas para as eleições de deputados estaduais e vereadores, cujas características são distintas dos deputados federais. Estes não são representantes do povo do Estado (papel dos senadores). Representam o povo brasileiro domiciliado eleitoralmente no Estado e legislam para todo o País, avaliando as aspirações do povo brasileiro de seu "distritão" (Estado).

Essas são algumas ideias que ofereço para continuar o debate da reforma política. O momento é agora. Não devemos mais postergar a votação dessa importante matéria para aprimorar nossa democracia e reaproximar partidos políticos do povo.

* Michel Temer é vice­presidente da República