terça-feira, 24 de março de 2015

Equidade fiscal e financiamento cidadão

Krisis em grego significava o ato de ponderar ou decidir entre diferentes cursos de ação como, por exemplo, o juiz que pondera os prós e contras de uma sentença. A palavra adquiria um significado especial na democracia grega quando acontecimentos importantes obrigavam os cidadãos a debaterem e decidirem novos rumos para a comunidade política (daí falarmos em "momentos de crise" política). As alegadas crises econômica e política enfrentadas pelo país deveriam ser entendidas, de acordo com o significado original de "crise", de modo positivo, na medida em que representariam verdadeiras janelas de possibilidade para a transformação de práticas e instituições sociais injustas.

Nas últimas semanas duas discussões importantes vieram à tona na esfera pública brasileira, ambas centrais para os esforços da teoria política contemporânea: o debate sobre a reforma política (entendida, em grande medida, como uma reforma no sistema de financiamento eleitoral) e a possibilidade de uma reforma tributária no país. O ministro da fazenda Joaquim Levy propôs uma reforma ampla na tributação sobre as heranças como parte central dos esforços do seu programa de ajuste fiscal. Como afirmou o economista francês Piketty, recentemente em visita pelo país, acerca da reforma tributária:

"[o] Brasil poderia ter um sistema de imposto mais progressivo. O sistema é bastante regressivo, com altas taxas sobre o consumo para amplos setores da sociedade, enquanto os impostos diretos são relativamente pequenos. As taxas para as maiores rendas é de pouco mais de 30%, é tímido para os padrões internacionais. Países capitalistas taxam as principais rendas em 50% ou mais. Os impostos sobre herança e transmissão de capital são extremamente reduzidos, apenas 4%. Nos Estados Unidos é 40%, na Alemanha é 40%. Não discutir a cobrança de impostos sobre a riqueza no Brasil é uma loucura [...] Todos os países têm imposto sobre herança muito superiores ao brasileiro [...] Uma grande reforma tributária seria importante". 

Em O lado bomartigo publicado na Folha de S. PauloMarcelo Miterhof discute os prós e contras da tributação sobre patrimônio - tal como a iniciativa foi proposta por Levy - enfatizando os benefícios da federalização do imposto sobre heranças, hoje a cargo dos governos estaduais. Existe um consenso entre os economistas de que a tributação sobre patrimônio não apenas é subutilizada como fonte de arrecadação como também representa um dos mecanismos mais perversos de desigualdade social de recursos no país. Para dar uma dimensão das distorções, segundo o estudo do economista José Roberto Afonso (IBRE-GV), discutido no post A Reforma Tributaria no Brasilo IPVA (imposto sobre propriedade de veículos automotores) arrecada mais do que o IPTU (imposto territorial e predial urbano) em 93% dos municípios brasileiros, incluindo metrópoles como Curitiba, Belo Horizonte e Ribeirão Preto, tornando a concentração de propriedade urbana e rural (as distorções são ainda maiores quando levamos em consideração a propriedade rural) um negócio altamente rentável para os herdeiros e herdeiras brasileiros. 

Quanto a reforma política (ou contrarreforma política, a depender do propositor), os cientistas políticos Wagner Romão (UNICAMP) e Bruno Speck (USP) defenderam esse mês o financiamento cidadão dos candidatos no texto Pelo Financiamento Cidadão de Campanhas. Nesse modelo, dois mecanismos de financiamento são possíveis: ou dedução direta do financiamento eleitoral do Imposto de Renda de pessoas físicas, ou o chamado "fundo complementar", o qual complementaria com dinheiro público as doações livremente escolhidas pelos indivíduos. Nos dois casos o financiamento público de partidos políticos seria muito mais responsivo aos interesses e valores dos indivíduos representados do que no modelo atual pautado por critérios exógenos de distribuição:

"[t]emos duas propostas. A primeira se daria pela renúncia fiscal de parte das doações. Com um teto máximo, que poderia ser de até R$ 1.000,00, por exemplo, o cidadão teria parte de sua doação deduzida da base de renda para fins de cálculo do Imposto de Renda (IR). Hoje, toda contribuição a candidatos ou partidos precisa ser informada à Receita, mas isso não é deduzido do IR por falta de amparo na lei. [...]  A segunda proposta é um financiamento de fundos complementares. Para cada doação por cidadão, o partido receberia um valor complementar diretamente do Fundo Partidário. Se o cidadão fizer uma doação de R$ 50, o Estado complementaria com mais R$ 50 transferidos do Fundo Partidário. Caso a doação ultrapasse R$ 100, o complemento pelo Estado fica limitado a um teto de R$ 100 por eleitor". 

Ambas as discussões satisfazem o sentido propositivo presente nos momentos de crise e constituem um estimulante cenário de mudanças, tanto para a política brasileira como para o papel da teoria política brasileira.

Agradeço a Samir Almeida e a Anildo Rodrigues pelas indicações e comentários.