segunda-feira, 6 de abril de 2015

Robert Putnam e as crianças deles

Em 2013 os Estados Unidos registraram mais ano de aumento consecutivo de desigualdade de renda em comparação ao ano anterior. Não apenas o índice de GINI, coeficiente que mede a distância da distribuição efetiva em relação a uma distribuição perfeita da renda (índice zero), aumentou para o país como um todo - indo de 0.476 em 2012, para 0.481 para 2013 - como ele aumentou em pelo menos 15 estados diferentes do país. Os dados e mapas podem ser encontrados no último relatório do U.S. Census Bureau. As evidências econômicas de que a desigualdade de renda nos EUA tem crescido constantemente ao longo das últimas quatro décadas não são novidade, a ponto do economista norte-americano Joseph Stiglitz alertar para o fenômeno de "brasificação" da sociedade norte-americana (em oposição à "americanização" do Brasil), isto é, para o momento no qual a disparidade socioeconômica tornar-se tão elevada que começa ameaçar as possibilidades efetivas de mobilidade social entre ricos e pobres. 

O cientista político Robert Putnam (Harvard) acaba de contribuir para o debate da desigualdade nos EUA com a publicação do livro Our Kids: The American Dream in CrisisEm contraste com estudos macroeconômicos, ou focados nos impactos estruturais causados pela desigualdade social, Putnam opta por contar as trajetórias de comunidades locais erodidas pela desigualdade, e de que modo a desigualdade de oportunidades sociais afeta as escolhas dos agentes sociais, a começar pela própria cidade natal de Putnam, Port Clinton, onde o cientista político cresceu nos anos 60. Putnam procura demostrar que o fosso de oportunidades sociais disponíveis entre crianças que cresceram em condomínios fechados, filhas de pais com educação superior (como os próprios filhos de Putnam), e crianças que cresceram, e continuam crescendo, em subúrbios pobres, sem acesso à educação e saúde de qualidade, aumentou drasticamente nos EUA desde a infância do autor. Acredita-se, por exemplo, que cerca de 1/4 das crianças norte-americanas abaixo dos cinco aos de idade estejam vivendo hoje em condição de pobreza. De fato, não é preciso grande esforço analítico para projetarmos os efeitos disso para as próximas gerações de cidadãos norte-americanos. Contudo, argumenta Putnam, dar vida a esse processo chamando atenção para as implicações reais da desigualdade econômica para a mobilidade intergeracional poderá ajudar o país a se unir contra o processo. Parte importante da proposta do livro é apelar para o futuro "das nossas crianças", ao invés de pensar apenas no "dos meus filhos", uma vez que o futuro dos filhos dos leitores escolarizados de Putnam estarão mais assegurado do que nunca na America de amanhã. 

Na tentativa de estimar o impacto da desigualdade presente na mobilidade social futura em uma sociedade - a grande preocupação comunitarista de Putnam - o economista Alan Krueger desenvolveu a Curva do Grande Gatsby a qual relaciona desigualdade socioeconômica, medida em GINI, com a taxa de mobilidade social, medida por meio da "elasticidade intergeracional da renda", isto é, quanto um dólar a mais na renda paterna afeta a renda esperada do filho na próxima geração. Não só os EUA possuem o valor mais elevado entre os países ricos (isto é, descontando o Brasil, um dos países ricos com menor mobilidade social do mundo) como, segundo Krueger, esse valor aumentou drasticamente nas últimas décadas: 



A Curva do Grande Gatsby

O enfoque escolhido por Putnam é assumidamente panfletário: os Estados Unidos estariam desperdiçando o potencial humano das próximas gerações e, ao viverem cada vez mais em duas sociedades segregadas, a luta entre ricos e pobres corroerá os valores cívicos compartilhados por sua geração (ver abaixo a entrevista de Putnam sobre o livro na qual ele assume essa política do livro). Ou seja, para além de razões derivadas da justiça social entre pessoas, o objetivo de Putnam é alertar para os riscos que um modelo rígido de estratificação social certamente trará para sua comunidade política, fundada - na visão de Putnam - no valor da distribuição meritocrática da riqueza social.

Muito poderia ser dito seja sobre o cenário e sobre as premissas de Putnam - por exemplo, o fato de que os EUA semprem foram um país extremamente segregado, ainda que nos "igualitários anos 60", os critérios fossem raciais e de gênero. Contudo, a principal pergunta colocada pelo livro é: em que medida podemos enfrentar o problema (desigualdade), e propor soluções (no caso de Putnam: aumento da proteção social focada entre os mais jovens) sem apontar para as causas políticas em questão

Em um denso e informativo ensaio para a revista The New Yorker (no qual aprendemos, por exemplo, que o matemático italiano Corrado Gini, criador do índice de GINI, aderiu ao movimento fascista italiano) a historiadora Jill Lepore (Harvard) contesta o potencial político de estratégias "conciliatória", como a de Putnam, que procuram explicitamente não condicionar a redução da desigualdade social à mudança do status quo político norte-americano: 

"[...] The book’s chief and authoritative contribution is its careful presentation for a popular audience of important work on the erosion, in the past half century, of so many forms of social, economic, and political support for families, schools, and communities—with consequences that amount to what Silva and others have called the “privatization of risk.” The social-science literature includes a complicated debate about the relationship between inequality of outcome (differences of income and of wealth) and inequality of opportunity (differences in education and employment). To most readers, these issues are more familiar as a political disagreement. [...] According to Putnam, “All sides in this debate agree on one thing, however: as income inequality expands, kids from more privileged backgrounds start and probably finish further and further ahead of their less privileged peers, even if the rate of socioeconomic mobility is unchanged.” He also takes the position, again relying on a considerable body of scholarship, that, “quite apart from the danger that the opportunity gap poses to American prosperity, it also undermines our democracy.”

Para Lepore, contudo, livros como o de Putnam, ou até mesmo livros mais progressistas focados no fenômeno do silenciamento das lutas sociais nos EUA, erram o alvo ao não apontar para (i) as causas institucionais da desigualdade social - a recorrência de governos pró-riqueza no poder e uma estrutura institucional com muitas possibilidades de veto contra agendas de mudança da estrutura econômica - e, (ii) para os grandes beneficiados pela explosão da desigualdade a partir da década de 60 - os 10% mais ricos da sociedade norte-americana, justamente os moradores dos bairros "privatizados" analisados por Putnam. Lepore menciona, por exemplo, o artigo de Linz & Stepan (2011) no qual os autores estabelecem uma correlação entre a persistência histórica da desigualdade nos EUA e o número elevado de poderes de veto no sistema de tomada de decisão, mas podemos pensar também nos argumentos de Hacker & Pierson (2011) e seu modelo analítico da "política do vencedor-leva-tudo", adotado nos EUA nas últimas décadas do século XX (ver aqui um post dedicado ao assunto). 

Em resumo, é possível afirmar que, por um lado, poucos serão os leitores que aceitarão tranquilamente os argumentos comunitaristas de Putnam. Por outro, é difícil discordar que o aumento da desigualdade econômica é um problema fundamental para a teoria política - problema esse que está longe de ter uma resposta satisfatória.