Uma das características do debate provocado pela publicação em inglês de O Capital no Século XXI de Thomas Piketty tem sido a qualidade elevada das resenhas e intervenções, favoráveis ou críticas, sobre o livro (ver algumas delas aqui e aqui). A Revista Novos Estudos contribuiu para manter esse padrão ao publicar mais uma ótima resenha, Diagnóstico Capital, escrita pelo economista Fernando Rugitsky (USP). O economista destaca as teses defendidas pelo livro e os esforço de Piketty em realizar um "diagnóstico de época" a partir dos dados de acumulação privada do capital - revertendo com isso certo descaso das ciências sociais em relação às questões econômicas. A resenha de Rugistky enfatiza sobretudo a importância de Piketty - sob todos os aspectos um economista mainstream - ao por em evidência a dificuldade da disciplina em lidar adequadamente com um dos problemas econômicos mais urgentes do nosso tempo: a desigualdade de capital entre os cidadãos.
"[...] A desigualdade [r > g] é a razão
principal para a concentração da riqueza e, consequentemente, das rendas do
capital. Ela permite que, nas palavras do autor, “a riqueza acumulada no
passado seja recapitalizada muito mais rapidamente do que a economia cresce”.
Foi a sua operação através do tempo que permitiu que, na Europa da belle
époque, o percentil dos mais ricos detivesse metade de todo o patrimônio
acumulado. Atualmente, esse percentil ainda detém uma parte menor da riqueza
total tanto na Europa como nos Estados Unidos (25% e 35%, respectivamente).
Mas, segundo Piketty, isso se deve, essencialmente, à imensa destruição de
capital ocorrida na primeira metade do século XX, ao crescimento acelerado observado
nas três décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial e a imposição de uma
tributação elevada sobre os lucros e a riqueza. A combinação desses fatores
permitiu que, por quase um século, a desigualdade se invertesse, isto é, r <
g [...]
O foco nessa desigualdade entre r e g representa uma inversão
significativa dos termos do debate usual. Segundo a inclinação tecnocrática da
maior parte dos economistas, a questão que foi objeto de investigação principal
nas últimas décadas foi o impacto da distribuição de renda no crescimento
econômico. Dessa maneira, não se considerava a desigualdade um problema em si,
mas buscava-se analisar se ela contribuía ou não para a obtenção de uma elevada
taxa de crescimento do produto, o fetiche dos economistas. Esse foco, na
realidade, remonta a um a um deslocamento da teoria econômica iniciado por John Maynard Keynes. Os
economistas políticos clássicos e seu principal crítico centravam
sua investigação nos determinantes da distribuição da renda
entre os proprietários de terra, os capitalistas e os trabalhadores.
Era esse, na expressão de David Ricardo, o “problema principal”
da economia política [...] O livro de Piketty é um esforço
inequívoco para retornar àquela tradição do século XIX, e a “contradição
central”, explicitando o impacto do crescimento na distribuição
(ao invés do impacto desta naquele), deixa isso claro
- Rugitsky: "Diagóstico Capital: mais uma resenha sobre o livro de Thomas Piketty"