Por
Lucas Petroni
É tentador pensarmos que o país vive hoje uma falta de liderança política, que cidadãos e cidadãs estejam perdidos em seus anseios e valores, que não consigam encontrar uma luz ideológica no fim no túnel do carnaval de horror da nossa política partidária e que
por causa dessa ausência vivemos um impasse político e social.
A perda de liderança política é matéria constante na grande mídia e, recentemente, passou também a fazer parte das matérias sobre o Brasil em jornais estrangeiros. Essa é a narrativa da ausência. É essa narrativa que orienta a interpretação, por exemplo, da análise da revista
Fortune sobre a crise brasileira que termina a concluiu com o chamado: "alguma liderança é necessária [...] urgentemente".
A explicação da crise pela ausência de lideranças é relativamente simples: assume-se que perdemos grandes nomes políticos e partidos inteiros, seja por falta de reposição natural, seja pela "desmoralização" da política, e que isso tenha nos custado um projeto coeso enquanto nação. O que a narrativa da ausência quer um consenso político, mesmo que seja de tipo de descartável até um futuro mais promissor em termos da qualidade humana dos nossos líderes.
Essa narrativa alimenta não só a mente dos jornalistas como também lugares mais sérios como a academia e os fóruns políticos brasileiros. Um dos juristas por trás do golpe afirmou, por exemplo, que estaríamos
"órfãos" de lideranças e valores. De fato, a fala do jurista possui um tom mais autoritário, escorregando em uma associação comprometedora entre problemas políticos, de um lado, e a figura convencional do despotismo no mundo clássico.
Despostes, em grego,
significa literalmente, o dono da família, e despótica é aquela pessoa quem gostaria de tratar os membros do mundo político como filhos e filhas ou, no mundo antigo, como escravos.
Mas não devemos nos enganar. A narrativa da ausência está lá. Precisamos de um líder, um movimento ou mesmo uma só ideia que possa nos salvar... de nós mesmos. Segundo a opinião do historiador José Murilo de Carvalho, nunca deveríamos subestimar a habilidade do "Brasil
em se sabotar", isto é, nossa incapacidade de nos autogovernar, em não saber o quer queremos especialmente diante da falta de lideranças morais e técnicas.
Devemos nos resignar e aceitar a narrativa ausentista? Acredito que não. Ao contrário, devemos rejeitá-la (para usar a retórica da Fortune, deveríamos rejeitá-la "veementemente"). Temos duas boas razões para isso: uma de natureza empírica e outra moral.
De fato, os termos do contrato social da redemocratização
parecem ter se esgotado e é extremamente difícil de saber com clareza quais são as alternativas disponíveis. Em termos extremamente sintéticos, tal consenso macroeconômico apostava na fórmula crescimento com redistribuição via mercado de trabalho formal, com auxílio social aos extremamente pobres.
Mesmo assim acredito que a visão da ausência é errada. Estamos de fato perdidos? Temos boas evidências para mostrar que estamos
divididos, mas não perdidos. Na verdade, isso demostra não apenas que sabemos o que queremos como também que talvez tenhamos finalmente nos achado no quadro ideológico.
Segundo a
pesquisa do Datafolha publicada no último dia 9 de abril, mais da metade dos entrevistados (63%) avaliam o governo Dilma como ruim/péssimo, contra apenas 24% regular e 13% ótimo ou bom. Esse dado poderia indica para sustentar a tese da ausência - e tem sido usado como tal pela mídia para apoiar o golpe jurídico. Seríamos um país que não nos reconhecemos no governo, na oposição ou em qualquer tipo de partido. Um país sem liderança. Ou melhor: um país
esperando lideranças.
Na verdade, como o
Data Popular já havia mostrado, essa é uma interpretação espúria dos dados. Podemos ter razões simetricamente
opostas contra um mesmo governo e, ao que parece, é esse o caso no segundo governo Dilma. Os descontentes com o
status quo político brasileiro possuem razões determinadas, identificáveis. Segundo
Renato Meirelles do Data Popular os motivos do descontentamento com o governo entre as classes C e D são diametralmente apostos aos das B e A:
"essa desaprovação [...] ocorre em todas as classes. A diferença é que, para esses segmentos de menor renda, não existe ódio ao governo, mas decepção. Temos 46% decepcionados por causa do que se prometeu e não foi cumprido, mas é gente que concorda com o projeto apresentado [...] Entre outras razões, esses grupos querem um Estado eficiente, mas não um Estado enxuto. Pois eles usam a educação pública, a saúde pública, aprovam o Mais Médicos".
Assumindo que todos os dados mencionados até o momento sejam consistentes, dois argumentos contrários podem ser identificados. Argumentos com implicações distributivas claras. Vamos chamá-los, respectivamente, de descontentes conservadores e descontentes radicais (notemos que essa
não é a diferença midiática entre "coxinhas e petralhas").
Em primeiro lugar, todos os tipos de descontentes defendem um gasto governamental eficiente e responsivo aos interesses da população - informação essa menos trivial do que parece a primeira vista, basta ver o discurso de ódio de apoiadores do golpe contra o que acreditam ser dependentes irresponsáveis do Estado de bem-estar. De um lado, os descontentes conservadores querem um Estado enxuto, com pouco gasto social, baixa inflação e expressivo crescimento econômico (grande parte gostariam também de moeda forte mas é controverso o quanto podemos ter ambos, isto é, crescimento e valorização do real).
Em linhas gerais essa é exatamente a proposta do governo
golpista Temer-Cunha. Corte de gastos, re-pactuação com os investidores estrangeiros e, sobretudo, a flexibilização das leis trabalhistas. Na verdade, podemos dizer que uma reforma trabalhista detalhada foi anunciada antes mesmo da oposição conseguir dar o golpe. Podemos não gostar da qualidade moral dos golpistas, mas a mensagem é clara: ao revisar os termos do pacto social demanda-se crescimento econômico em detrimento de distribuição.
Do outro lado, eficiência significa bom provedor de serviços públicos, proteção social às famílias durante a crise e regulação do mercado de trabalho. Espera-se que o governo lute para manter aberta a janela de oportunidade de ascensão social, o que significa não apenas manter programas sociais baratos mas, principalmente, manter a estrutura do Estado de bem-estar. Como um colega me lembrou recentemente, na próxima eleição teremos a primeira participação eleitoral dos beneficiados pela bolsa-família. Seria interessante compreender o que essa geração tem a dizer sobre o futuro do gasto público no país. Daí a ideia de trazer o Lula como ministro e de se reaproximar dos movimentos sociais - tomada às pressas pelo governo Dilma. Descontentes radicais querem garantir distribuição antes de re-discutirmos crescimento.
É fácil ver que não estamos perdidos em nossos interesses. A divisão reflete a falta de base material para mantermos ambas as ambições de modo prioritário. A eleição de 2014 escolheu uma delas. A oposição não aceita e o governo tem dificuldade em assumir seus compromissos de campanha. Contudo, ao não discutirmos abertamente as bases materiais desse conflito, ao tratar "crise econômica" como um conceito mágico, auto-explicativo, e optando por analogias paternalistas ao invés de apresentar argumentos, perdemos uma excelente oportunidade para testarmos os melhores alternativas presentes nos dois lados da disputa.
Podemos até mesmo encontrar alternativas sub-exploradas. Por exemplo, o fato de que temos uma das maiores concentrações de renda do mundo protegida por um sistema tributário regressivo. Se quase
1/4 da riqueza nacional tem sido apropriada pelo 1% mais beneficiado pela cooperação social ao longo de um século, e se o imposto de renda e de propriedade rural são regressivos, talvez seja hora de resdiscutirmos quem deve pagar a manutenção do Estado de bem-estar social. Rejeitar o aumento de imposto sobre consumo é uma possível forma de aliança entre os 90%. Não consigo entender porque a classe média que, em geral,
apoia a provisão de serviços públicos de qualidade, necessariamente se alinharia aos 1,5 milhões de brasileiros que compõem o 1% não estão preocupados com o desmonte do SUS ou com a reestruturação das escolas públicas.
Finalmente, como afirmei no começo, a narrativa da ausência é desrespeitosa. Ausentistas tendem a tratar a posição política alheia como uma manifestação de estupidez. É interesse notar que a suposta ausência de liderança afetaria sempre a posição dos outros, nunca a de que enuncia a tese. A narrativa não admite a primeira pessoa - "
eu não tenho líder", "
eu estou órfão de ideias"- ainda que seja perfeitamente possível não sabermos exatamente aquilo que queremos. A força do argumento vem sempre do uso da terceira pessoa: "
eles (os brasileiros, o povo, etc.)
estão carente de líderes".
Além da falta de base empírica no caso brasileiro, revela-se com isso um juízo implícito sobre a assimetria da distribuição de autonomia pessoal. Aquele que não tem líder - o "ele/elas" do discurso da ausência - é visto como uma criatura limitada, a ser sujeitada por um discurso político esclarecido. Certamente, podemos não gostar do que os nossos concidadãos querem e devemos estar preparados para contestá-los quando for o caso. Nada é mais revoltante do que a festa do fascismo dominical filmado pela Globo. Mas ainda assim é desrespeitoso acreditarmos que as pessoas simplesmente não sabem o que fazem quando o fazem.
A própria ideia do que significa viver politicamente entre iguais é desrespeitada pelos ausentistas (sejam eles coxinhas ou petralhas, vale lembrar). A falácia contida no argumento conclui que, a partir do fato de que existe uma divergência profunda sobre a melhor solução para um problema social, que a divergência em questão é
na verdade fruto da ignorância cognitiva de quem diverge.
Fruto de nossa tendência à "auto-sabotagem", segundo o historiador. O ausentista afirma que não deveriam existir desacordos ou que, se eles existem, as pessoas deveriam ser levadas a acreditarem - em nome de um bem maior ? - que eles não existem. Talvez, o conflito distributivo brasileiros deveria ser tratado
como se não fosse um problema ou que, afinal, não vivemos na democracia mais economicamente injusta do mundo. O problema é que muito provavelmente as classes D e C possam não queiram viver nessa fantasia.
O problema é que a divergência atualmente em curso no Brasil existe, é aguda e
não é causada apenas pelo desordenamento das nossas paixões. Existe um conflito distributivo grave em andamento. Narrativas que ignorem esse fato sirve para justificar a desestabilização de um governo que, para o bem ou para o mal, encontra sua justificação na legitimidade democrática. Destruir essa legitimidade é sacrificar a única forma civilizada de resolvermos problemas como esses em um ambiente de pluralismo de interesses materiais e conflitos de valores, na maioria das vezes irredutíveis. De fato, esse conflito não explica tudo. Talvez explique pouco até. Mas tentar ignorá-lo é desrespeitar nossa inteligência.